Teatro para quem gosta de teatro político ou o pacto de Fausto não realizado
03/05/12 09:00A surpresa da peça “Fogo-Fátuo”, com texto de Samir Yazbek, que também representa o protagonista, é a coragem desse personagem. Paradoxalmente se trata de sua própria covardia.
O enredo adapta o mito consagrado pelo poeta alemão Johann Wolfgang von Goethe (1749-1832) à vida contemporânea de um escritor de classe média, que tem sede de conhecimento e é infeliz.
Ele discorda das coisas do mundo, revolta-se com os governos, a política, a economia. Contraria-se com o cotidiano comezinho e com os defeitos humanos.
O espetáculo é minimalista. Há economia de tempo, pois o drama é curto, de 50 minutos. As palavras são calculadas. Os gestos, sutis. Cenário e figurinos são traços.
Arranjado desse modo, o conjunto revela uma espécie de vazio interior, que se projeta sobre o espectador.
A peça parece um filme feito quase todo em plano-sequência. Mostra o diálogo ininterrupto de Fausto e Mefisto (Helio Cicero), com o primeiro em constante apelo à plateia através de um olhar ao mesmo tempo irônico e angustiado.
A não adaptação do escritor é questionada por Mefisto, que lhe sugere desejar coisas comuns, ter um amor, dinheiro, sucesso.
Mas ele quer escrever, quem sabe sobre o próprio Mefisto ou seu desejo de narrar de novo a lenda em que se enreda.
O escritor titubeia, olha para a plateia, volta à sua mesa de trabalho. No fim, desiste, como aquele personagem de Guimarães Rosa, o filho do canoeiro, que não conseguiu tomar o lugar do pai no destino de ficar sempre à imaginária terceira margem do rio.
Essa solução não é explícita, é como a chama movente do fogo. Deixa o espectador em estado de ambiguidade, efeito maior das poéticas.
Na sua aparente desistência, o escritor conforma-se ao estado em que se encontra. A coisa é kafkiana. De que vale um escritor longe de sua mesa de trabalho?
Como pode um escritor desejar algo mais que não seja o ofício da literatura? Longe da escrivaninha, escreveu Franz Kafka (1883-1924), o escritor é esbordoado pelas pinças do diabo.
É nesse ponto que “Fogo-Fátuo” comove e traduz o reconhecimento do público. Todos saem atônitos do teatro.
O mito de Fausto atrai adolescentes pela ousadia de brincar com fogo, de desafiar as forças do mal.
Mas a vida é já tão perversa, e feminina – conforme Goethe escreveu um dia.
Talvez seja por isso que todo pacto demoníaco representado na arte sempre acaba em tragédia.
Ironicamente, Fausto-escritor toma coragem e acovarda-se. O que é bem provável que signifique um gesto de amor e esperança na humanidade.
Adolescentes a partir de 16 anos, acompanhados de seus pais, têm chance de aproveitar as cruéis, mas reais, proposições de “Fogo-Fátuo”.
A direção de “Fogo-Fátuo” é de Antônio Januzelli. A peça tem cenografia de Laura Carone, figurino de Telumi Hellen, trilha sonora original de Marcello Amalfi e iluminação de Osvaldo Gazotti.
Está em cartaz no Sesc Santana. Segue o link: