Livro “Retornar com os Pássaros” funde poesia e prosa
12/03/12 11:30“Retornar com os Pássaros”, de Pedro Maciel (ed. LeYa, 2010), é uma espécie de alegoria do voo, no sentido metafórico, e percorre um voo, no sentido físico. Prova disso são as ideias que são retomadas de um capítulo para o outro, em geral nos títulos, fazendo o pensamento saltar para o capítulo anterior para então prosseguir e, assim ou por isso, o leitor realiza uma leitura sempre circular.
Pode-se dizer também que essa organização toma emprestada a construção musical, com o retorno do tema, mas de um modo “desconstruído” (fragmentário), como na música contemporânea.
Esse terceiro livro de Pedro Maciel confirma a realização de uma nova forma de narrar na língua portuguesa, que se encaixa perfeitamente no tempo exíguo que existe no presente, digital e instantâneo, em que o trabalho solicita todas as horas.
“Retornar com os Pássaros” foi antecedido por “A Hora dos Náufragos” (ed. Bertrand Brasil, 2006) e “Como Deixei de ser Deus” (ed. Topbooks, 2009). O trabalho de Maciel é elogiado por escritores e críticos como Ferreira Gullar e Ivo Barroso.
O estilo de Pedro Maciel atrai o leitor como um ímã, como diz a canção. É impossível parar de ler e, ao final, permanece aquela saudade e tristeza porque a história acabou.
O mais intrigante, porém, é que não existe um desenho tradicional no enredo, pois o personagem-narrador tem uma origem misteriosa e um percurso enigmático.
Vê o mundo de fora e trata o sonho como realidade ou vice-versa. A ação é joyciana, acontece na mente do protagonista. Já o tempo é woolfiano, pois nunca passa e nunca para de passar. Sua prosódia é singular, única.
Impressiona a proximidade com a filosofia e a astronomia. Não há como não pensar no livro “Poética”, de Aristóteles, quando o filósofo grego descreve o conteúdo dos gêneros e discorre sobre a construção do pensamento.
As presenças de Nietzsche e Cioran se revelam aqui e ali no tom profético de certas afirmações sobre a humana sina de viver.
Ecos de Dostoiévski e Beckett confirmam-se em considerações sobre o nada e a existência. A psicanálise fenomenológica de Bachelard pode ser lida nas entrelinhas sobre a natureza dos materiais que são objetos do autor-narrador.
Todas as camadas do gênero romance são postas em cheque. O jogo pronominal questiona a função do protagonista.
O eu-narrador autodestitui-se logo no início –“Eu nem sempre quer dizer eu mesmo”– e conduz a reflexão do leitor, que se depara com “insights” ou revelações poéticas.
Confunde-se com um “ele” misterioso e inclui o leitor na narrativa. Última coisa: o especial de “Retornar com os Pássaros”, com sua ambiguidade e ironia constitutivas, é pensar o estar no mundo dentro e fora do que se compreende como humanidade, num jogo inteligente entre a física e a metafísica.
A literatura de Pedro Maciel tem desdobramentos múltiplos e surpreendentes. Há muitos aspectos a explorar e muito a dizer sobre esse livro.
Seguem dois capítulos de “Retornar com os Pássaros”, de Pedro Maciel:
“Terra, Ar e Água”
“(…): não imagino onde estarei quando não mais estiver por aqui. ‘Amanhã fica pra amanhã. Há dias que perdi a noção do tempo. Onde é o dentro do tempo ou o centro do espaço?’ Eu volto com frequencia a certos lugares quando o tempo avança em cima da hora. Eu sempre perco a hora no último momento. Somos o tempo, diz o meu avô. ‘Às vezes tenho vontade de voar para outro espaço, como fez Perseu’. ‘Não há maior maravilha que vagar pelas alturas estelares, deixar as regiões sem encanto desta Terra, cavalgar as nuvens, alçar-se aos ombros de Atlas, e ver lá longe, lá embaixo, as diminutas figuras a moverem-se sem rumo, sem razão, aflitas, temendo a morte, e aconselhá-las a fazer do destino um livro aberto’.”
“Não me Restava Muito Tempo”
“A última vez que a encontrei, ela implorou-me para que não a abandonasse. Talvez ela ainda viva naquela casa azul e branca; o passeio lateral da casa estava sempre manchado de um vermelho carmim, um roxo amarelado pelo Sol. De madrugada escutávamos as amoras em linha reta despencarem no chão. Por amor perdemos a razão. ‘Há sempre alguma loucura no amor. Mas há sempre, também, uma razão na loucura’. ‘O amor é uma neurotoxina; pode danificar irreparavelmente o sistema nervoso central, se não formos ‘correspondidos’. Um dos sintomas associados à superexposição do amor é a cegueira’. ‘No amor basta uma noite para fazer de um homem um deus’. ‘Raramente um sentimento está tão predestinado a criar coisas nefastas e, ao mesmo tempo, maravilhosas’. ‘Pode-se dizer também que o amor é como aquela que no céu denominamos Via Láctea, um amontoado brilhante formado de pequenas estrelas, cada uma das quais muitas vezes é uma nebulosa’.”
Pedro Maciel foge dos “manuais de procedimentos”, foge do esquema “começo, meio e fim”; nada a determinar, nada que não seja o olhar livre sobre a Existência numa escritura única de Beleza e Redenção: “Escrever é desfazer-se de seus remorsos e rancores, vomitar seus segredos…É uma provocação, uma visão falsa da realidade, que nos coloca acima do que existe e do que nos parece existir…Fábula, sonho dos nossos antepassados…”, assim ele o diz no texto 49, nas suas “Mentiras da imaginação”. Tudo se multiplica e se recria e se renova num jogo sem fim, de instante a instante:Retornar com os pássaros.
Uma literatura difícil, mas fácil de ler, essa é uma característica intrigante.
sim, sim,
e a gente volta a ler de novo,
de novo,numa leitura sem fim